Mídia
A inquietude sem lógica
EXPOSIÇÃO
| Uma ampla mostra de Chirico no País revela a ousadia do artista em atuar pela
inovação e também pela ordem clássica
Cedo, Giorgio
de Chirico (1888-1978) indagava o que deveria amar senão o enigma. A frase,
inscrita em latim num autorretrato de 1911, condensa o pensamento do artista de
origem grega criado na Itália e confere à sua obra uma espécie de epíteto. Como
se verificou depois, a sentença juvenil não deu conta das nuanças de uma
trajetória pródiga em inovações, mas também de um retorno à ordem clássica da
arte. Essa aparente contradição se tornou o fato mais inquietante nos estudos
sobre o pintor que detonou a chamada corrente metafísica para então dela se
distanciar por uma visão mais pura do ofício e, por fim, recuperá-la numa
empreitada derradeira. É nesse último ato que se estrutura em grande parte a
exposiçãoDe Chirico – O sentimento da arquitetura,
que tem início sexta 9 na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, e depois
seguirá em março para a Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte, e Museu de
Arte de São Paulo, o Masp, no fim de maio.
A razão de contemplar a jornada
final do artista se explica pela procedência dos 122 trabalhos aqui reunidos.
Trata-se de um dos lotes mais significativos da Fondazione Giorgio e Isa de
Chirico, sediada em Roma. Se não inclui a pintura dos anos 10 a 30, de
efervescência criativa e conceitual, a seleção reflete o estilo num
espelhamento das principais características do pintor, ressurgidas intactas na
sua produção tardia. No chamado período neometafísico, o pintor recriou obras
anteriores e avançou com traços originais em outras, o que poderá ser
constatado nos 45 óleos sobre tela e nas 11 esculturas dos anos 50 aos 70
expostos. No conjunto estão as figuras míticas (Edipo e la Sfinge,
1968), híbridas como manequins sem feições (Archeologi, 1968),
os arcos das galerias de passagem e praças (Termopili, 1971) que
tanto o marcaram e se justificam por uma formação pessoal desde a infância.
Únicos exemplares da fase de 1930, 66 litografias inspiradas nos caligramas de
Guillaume Apollinaire completam a mostra.
O conceito de arquitetura a que alude o
título da exposição não é apenas o óbvio registro das arcadas e da piazza de Florença ou de Turim. Para De Chirico, a
manifestação arquitetônica é essencial ao consolidar a cultura na história,
como lembra a curadora Maddalena D’Alfonso, “porque representa para o indivíduo
a dimensão civil, exprimindo-se com maior evidência na -praça urbana”. Esse
lugar ideal de que ela nos fala, e visível seja num templo ou torre, seja numa
sala nas telas, será o território predileto para o exercício do enigma na obra
do artista, entendendo-se por enigmáticos “a dúvida e o interrogar humano
constantes”.
É da reflexão consumada mais tarde em
obras também presentes na mostra como Piazza d’Italia (ou Monumento ao Poeta, 1969) e Piazza d’Italia con Statua di Cavour (1974) que o
artista parte para um enfrentamento inesperado na arte. Sentado na praça Santa
Croce florentina, no início de 1910, diante da basílica ladeada por pórticos e
arcos, ele teria atinado para a falta de um sentido no mundo. Conforme escreve
o pintor em Sull’arte Metafisica (1919),
em trecho lembrado pela estudiosa Elena Pontiggia, a obra de arte deixava
naquele momento de ser uma representação para se tornar revelação, algo que
ainda está para ser descoberto e, portanto, novo.
Cita o arco, por exemplo, como um círculo
interrompido, “a encerrar algo de misterioso, que ainda deverá cumprir-se”. Ao
defender a partir dali o mistério e o estranho, antes que o exposto e o
consolidado, ele retoma as conotações de uma filosofia grega, aquela da
expressão “para além das coisas físicas”, ou seja, a metafísica. Seu primeiro
trabalho da futura série de praças italianas, de sintomático título O Enigma de uma Tarde de Outono (1910), em nada
traz a figuração tradicional daqueles espaços. O templo católico é substituído
por outro de linhas gregas. No centro, onde estaria uma possível fonte, surge
uma estátua apolínea de costas e sem cabeça. A melancolia torna-se sentimento
recorrente. Exemplar inicial do que a curadora assinala como a cidade
metafísica, em detrimento de outras como a renascentista e a -moderna criadas
pelo pintor, a tela introduz características amadurecidas em trabalhos pródigos
como Muse Inquietanti, de 1924, que pode ser vista no lote
na versão revisitada de 1974, e também na forma de escultura.
Para entender a “revelação” e os
elementos de referência que passam a integrar o universo do artista, é
necessário buscar sua trajetória pessoal. De Chirico nasceu em Volos, na
Grécia, de pais italianos. A região onde cresceu está no centro de muitas das
lendas da mitologia grega, com as quais conviveu desde criança. Esse legado
permaneceria para sempre em sua pintura, no formato de figuras heroicas como
Ulisses (Ritorno di Ulisse, 1968), Orfeu (Orfeu Trovatore Stanco, 1970) e Orestes (Il Rimorso di Oreste, 1969, e Oreste
Solitario, 1974), musas inspiradoras como Ariadne, viajantes e
exploradores, a exemplo dos argonautas, e a própria acepção da viagem lendária,
comumente representada por mastros e velas de embarcações.
O ato de viajar seria definidor para De Chirico na construção de seu
conhecimento. Entre idas e vindas à Itália, ele estudou em Munique e conheceu a
pintura de realismo mágico e sombria de Arnold Böcklin, com seus temas
alegóricos, e o trabalho de Max Klinger de cunho simbolista, que se
apresentaria ao pintor como uma ligação ao surrealismo mais tarde. Viveu entre
1888 e 1889 na Turim percorrida pelo filósofo Nietzsche, de quem o pintor diz
ter assimilado a noção de refutar a realidade. O artista se encantaria
igualmente com a arquitetura da cidade, tomada por construções com arcos e
galerias de passagem, além de praças desenhadas com precisão, já motivo de suas
pinturas naquele momento.
Os encontros decisivos, no entanto, viriam da temporada parisiense a
partir de 1911 e na volta à Itália, período no qual prestou serviço militar
durante a I Guerra Mundial. Em Paris, De Chirico fez as primeiras exibições
importantes e conheceu nomes em torno dos salões de arte, como Pablo Picasso e
Apollinaire, poeta para quem fará os caligramas anos mais tarde. A descoberta do
trabalho do ítalo-grego é um acontecimento para esse círculo intelectual, o que
abrirá as portas da Europa para o artista. Mas estava para se dar ainda o marco
fundamental do movimento que seria iniciativa em muito conflitante com as
vanguardas existentes.
Inapto para o front e com a saúde -delicada,- De Chirico passou
longa temporada internado em um hospital de Ferrara, onde voltou a pintar.
Junto, desde Paris, estava seu irmão também pintor, Andrea, de codinome Alberto
Savinio. Ali conheceriam Carlo Carrà, Fillippo di Pisis e Giorgio Morandi, com
quem lançariam entre os anos de 1917 e 1919 as bases do que viria a ser a
corrente metafísica. Morandi teria breve percurso no grupo, mas Carrà seria
considerado por breve tempo quase um mentor ao escrever o livro Pintura Metafísica naquele momento, sem citar o
colega, que detinha a origem do pensamento. Maddalena D’Alfonso lembra o
episódio, que terminaria em rompimento de ambos, para pontuar a reflexão
inicial do artista, em muito baseada em outro filósofo, Arthur Schopenhauer. “A
metafísica é para De Chirico uma ordem da realidade que ele colhe, num instante
de suspensão do visível, do aparente, em um olhar fugaz sobre a realidade
objetiva das coisas em si mesmas. E se manifesta como revelação.”
A articulação inicial da metafísica
pode ser sintetizada na intenção de fazer de uma realidade não lógica algo
crível. Esse pensamento iria contra as tendências dominantes, como o Futurismo.
Diferentemente de buscar novas formas na arte, procurava, isto sim, seu significado.
Num texto de 1927 publicado em um boletim da Galeria L’Effort Moderne, de
Paris, De Chirico explicava simbolicamente sua inspiração: “É estranho
ver móveis como camas, guarda-roupas, poltronas e mesas jogados numa estrada,
em um cenário que normalmente não são vistos. Parecem ganhar uma nova luz,
investidos de uma estranha solidão, o que gera uma intimidade entre eles”. Num
contexto mais amplo, a proposta da metafísica era justamente não subverter
nada, mas fazer ver o que estava presente, mas escondido. “É um fato novo”,
apontou o crítico Giulio Carlo Argan em ensaio sobre a arte moderna, “um fato antirrevolucionário e contraditório”,
pois segue contra a tendência das demais correntes artísticas do período de
transformação social.
A
arte metafísica teve grande aceitação entre os surrealistas e influenciou
este e movimentos seguintes, como o Dadaísmo. Isto até 1919, quando De Chirico
abandonou a tese por um ideal de arte clássica, em muito inspirado por uma
antiga influência barroca e artistas como Rafael e Rubens. Num artigo famoso na
publicação
Valores Plásticos, preconizou um
retorno a velhos métodos de pintura e ao estudo de personagens e temas.
Tornou-se um opositor feroz da arte moderna. Os surrealistas o declararam morto
e a crítica o execrou. Para muitos, porém, continuou respeitado e um pintor de
grande conhecimento do ofício, a quem recorrerão diversos aprendizes, entre
eles o gaúcho Iberê Camargo, nos anos 40. De Chirico nunca se conformou com o
tratamento por sua opção de mudança. Na etapa final da carreira, falsificava a
si mesmo, recriando suas telas iniciais nas décadas de 60 e 70 com datas
anteriores, como se verá em alguns exemplares desta mostra. Lucrou com a
diatribe, mas também vingou-se, talvez a única atitude que em toda a vida lhe
pareceu lógica.
Fundação Iberê Camargo