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Sempre Vivas
A mostra Morandi
no Brasiltraz novamente ao
país a obra de um dos maiores pintores do século XX: o mais antigo dos modernos
e o mais moderno dos antigos
O pintor italiano Giorgio Morandi
(1890-1964) não compartilha da mesma fama cintilante de seus contemporâneos
Pablo Picasso, Salvador Dali e Joan Miro. Por isso, para os não iniciados, uma
retrospectiva de seu trabalho carrega o prazer das grandes surpresas. Mestre
das naturezas-mortas e das paisagens silenciosas e estáticas – a não ser pelo
ruído eventual de uma pincelada mais vigorosa -. Morandi trilhou uma trajetória
única de precisão e rigor, seguindo ao lado dos grandes movimentos estéticos do
século XX sem realmente se engajarem nenhum deles. “Ele é o mais moderno dos
antigos, e o mais antigo dos modernos”, define Lorenza Selleri, curadora da
mostra Morandi no Brasil (em cartaz desde sábado, até 24 de fevereiro de 2013,
na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre). O título da exposição tem a ver
não só com a relação do pintor com artistas brasileiros (Milton da Costa, Mira
Schendel, Alfredo Volpi e Iberê Camargo foram alguns dos que receberam a
influência “morandíana”), mas também, e principalmente, com o fato de seu ponto
de banida ser a recriação da sala especial de Morandi na IV Bienal de São
Paulo, em 1957.
A sala original era composta de
trinta telas escolhidas pelo artista, que acabara de receber da Bienal o Grande
Prêmio de Pintura (os outros concorrentes eram ninguém menos que o inglês Bem
Nicholson e o russo naturalizado francês Marc ChagaIl). Desta vez, quarenta
pinturas e quinze gravuras fazem uma síntese da evolução do trabalho de Morandi
entre 1910 e os anos 60. Há também um espaço dedicado a três grandes painéis
com imagens de seu ateliê – fotografado pelo italiano Luigi Ghini logo após a
morte do pintor nas quais aparecem os vários objetos cotidianos que eram
seu tema recorrente: garrafas, latas, bules de metal, jarras, vasos quebrados, frascos
diversos e algumas flores de seda. “Como as flores verdadeiras murchavam
enquanto ele pintava, Morandi preferia as artificiais”, explica Lorenza. O
pintor também aproveitava a poeira depositada sobre os objetos – não como
licença poética, mas para explorar efeitos de luz e cor. Da mesma forma,
preenchia recipientes de vidro com cal e tinta o para tomá-los opacos e obter
assim o contraste entre volumes transparentes e formas sólidas. “Suas
naturezas-mortas são concretas, têm peso e calor, quando comparadas às
composições assépticas de um artista metafísico como De Chirico”, observa a
curadora.
Apesar de não seguir uma cartilha
tradicionalista. Morandi era devoto dos valores plásticos da pintura italiana
antiga, principalmente dos anos 1300 e 1400, época da qual era um grande
estudioso. Admirava sobretudo a obra de artistas como Píero della Francesca e
Lorenzetti. Além disso, tinha verdadeira fixação pelas linhas austeras da
arquitetura greco-romana, em sua alternância de colunas e espaços vazios. Duas
obras da mostra – Paesaggio aGizzana(1932) ePaesaggio con SuadaBianca(1941) – são exemplos bem acabados
das paisagens morandianas: na primeira, a natureza é retratada por meio de
figuras geométricas traçadas com pinceladas magras. Na segunda, construções que
lembram caixas são a única interferência num cenário solitário. Em ambas,
impõe-se a total ausência de uma narrativa. “A força de Morandi está na paz de
sua arte”, resume Carlo Zucchini, amigo que conviveu com ele no fim da vida e
se tornou uma espécie de guardião da memória do artista. Desse mesmo período é
a série de naturezas-monas com conchas que, segundo Zucchini, desmente que
Morandi se mantivera indiferente às convulsões sociais e políticas da II Guerra.
“Enquanto Picasso gritava comGuemica,Morandi escolheu cores sombrias e
formas fossilizadas para sugerir o silêncio mais cruel que a guerra pode
provocar”, acredita.
Outra parte da mostra é dedicada
às gravuras, nas quais o mestre exibiu impressionante domínio técnico e um
excepcional discurso figurativo, utilizando os mesmos motivos presentes na
pintura. Segundo a curadora, a ausência de cor, as variações de luz e a
precisão dos traços foram sugeridos a Morandi pelas obras de dois de seus
favoritos: Rembrandt e Cézanne. “De Rembrandt, ele possuía duas belíssimas
gravuras originais. De Cézanne, apreciava. a composição dos elementos, já que
tinha conhecido as primeiras obras do artista através de fotos em e branco”,
conta Lorenza.
Morandi não teve uma vida rica de aventuras ou
episódios anedóticos, como se costuma esperar de um artista de sua magnitude.
Nasceu e morreu em Bolonha – em cuja Escola de Belas Artes ensinou – e passou
curtas temporadas de verão em Grizana, onde mais trabalhava do que propriamente
descansava, porque dizia encontrar por lá a paz e o silencio necessário à
pintura. Era homem de poucos amigos e
levavauma existência quase monástica.
Carlo
lembraque Morandi era avesso a reuniões
sociais e tinha um temperamento difícil. “Como sempre viveu e trabalhou
seja ele não se tornou uma caricatura de artista”, diz. E ai de quem lhe viesse
com interpretações simbólicas ou leituras filosóficas de seu trabalho. Nesses
momentos, disparava: “Não há nada mais surreal ou abstrato do que a realidade”.
Morandi no Brasildeixa claro que o mestre, de fato, conhecia
sua obra melhor do que ninguém.
Fundação Iberê Camargo