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Iberê, segundo Gerdau
O centenário de nascimento do artista, o empresário Jorge Gerdau Johannpeter fala à Brasileiros sobre a dimensão humana do amigo Iberê Camargo e de um tema central para o desenvolvimento do País: a educação por meio da cultura.
Um herói para a cultura do Rio Grande do Sul . Com essa defesa da reputação artística de Iberê Camargo (1914-1994), Jorge Gerdau Johannpeter ajudou a criar, em 1995, a fundação em homenagem ao amigo. A iniciativa só foi possível com o apoio de Maria Coussirat Camargo (1915-2014), viúva de Iberê, detentora do acervo do pintor. Em 2008, depois de 13 anos instalada no bairro Nonoai, zona Sul de Porto Alegre, a Fundação Iberê Camargo (FIC) ganhou nova sede e um icônico museu, à margem do Lago Guaíba. Mesmo antes de erguido o edifício de formas sinuosas e geométricas, do renomado arquiteto português Álvaro Siza, foi premiado com o Leão de Ouro de Melhor Projeto na Bienal de Arquitetura de Veneza, em 2002.
Presidente executivo da FIC, aos 78 anos, Gerdau também preside o conselho administrativo do Grupo Gerdau, gigante do ramo da siderurgia, atuante em 14 países. O empresário e o pintor tornaram-se amigos em 1982, quando Iberê voltou a morar em Porto Alegre, depois de quatro décadas no Rio de Janeiro. Gerdau é também um dos idealizadores da Bienal de Artes Visuais do Mercosul, que chegará à 10a edição em 2015 e, a exemplo da FIC, ajudou a consolidar o circuito de arte no Rio Grande do Sul.
No último dia 18 de novembro, data marcada pelo centenário de nascimento do artista, a FIC promoveu a abertura da exposição Iberê Camargo: Século XXI. Com curadoria de Agnaldo Farias, Icleia Cattani e Jacques Leenhardt, a mostra reúne mais de 60 trabalhos do pintor gaúcho, que “dialogam” com 21 obras de outros 19 artistas, entre eles, Regina Silveira, Artur Lescher, José Bechara, Gil Vicente, José Rufino, Carlos Fajardo e o coletivo Cia de Foto. Na celebração, também foi lançado o livro Cem Anos de Iberê. Com textos críticos e reproduções de mais de 200 trabalhos, a publicação foi organizada por Luiz Camillo Osorio e editada em parceria entre a FIC e a Cosac Naify.
Anfitrião da celebração aos 100 anos de Iberê, Gerdau recebeu a reportagem da Brasileiros em Porto Alegre. A seguir, os melhores momentos da entrevista.
Brasileiros – A família Gerdau tem um histórico de apoio à cultura no País. Essa influência foi determinante para nortear as ações do senhor como gestor?
Jorge Gerdau Johannpeter – Nosso envolvimento com cultura veio muito forte por parte de nossos pais e avós. Em 1947, por exemplo, houve a fundação da OSPA – Orquestra Sinfônica de Porto Alegre e meu pai (o empresário Curt Gerdau Johannpeter) foi pioneiro em apoiar a iniciativa. Tive um amigo, Nilton Alves, já falecido, que inaugurou comigo, em 1950, a primeira galeria de arte da cidade. Antes disso, se comprava arte em lojas de molduras. Não havia galerias para, além de negociar obras, realizar exposições e trazer artistas de outros estados para a cidade.
Foi então que começou a ser estabelecido um mercado formal de artes visuais em Porto Alegre… Exatamente. Mais tarde, nos anos 1990, um personagem importante para consolidar esse processo foi outro grande amigo, Justo Werlang. Com ele, fiz dois empreendimentos em Porto Alegre, a Fundação Iberê Camargo (FIC) e a Bienal de Artes Visuais do Mercosul. Justo foi o primeiro presidente da Bienal. Nas decisões básicas para a FIC, ele também foi peça-chave. Hoje, ele é vice-presidente da Fundação Bienal de São Paulo.
Como se deu a aproximação entre o senhor e Iberê Camargo?
Por meio de amigos comuns. Conheci Iberê quando ele voltou do Rio de Janeiro, em 1982. Foi então que comecei a frequentar a casa dele e apoiar algumas exposições. Tive a felicidade de conhecê-lo não só como artista, mas principalmente como ser humano.
E como era o ser humano Iberê Camargo?
Nos anos finais de vida, quando já estava com o problema do câncer e não sabia quanto tempo ainda lhe restava, eu procurava visitá-lo sempre. Essa proximidade me levou ao ponto de questionar se a melhor qualidade artística o Iberê está em sua pintura ou na força de seu pensamento. Ele tinha uma visão muito crítica sobre as justiças e injustiças do mundo. Dona Maria (Maria Coussirat Camargo, viúva do pintor, morta em fevereiro) teve um papel importantíssimo para a FIC. Ela cuidou de todos os trabalhos do Iberê e deixou tudo registrado. Algo que nos ajudou a ter um maior domínio sobre todas as fases de sua obra. Iberê era angustiado em não perder esse controle. Contava isso para mim, mas nunca me pediu nada. Quando faleceu, chegamos à conclusão que tínhamos de fazer um esforço para construir algo em homenagem a ele.
E como se deu a escolha do Álvaro Siza e a construção da FIC? A topografia do terreno sugere que a obra foi complexa…
Isso aqui era uma pedreira. Ainda é possível enxergar vestígios dela. Tiramos algumas fotos do local para fazer o convite ao Siza, e ele enxergou a possibilidade de construir o prédio emoldurado com esse verde que tem no entorno. Vários profissionais foram listados, entre eles alguns dos maiores nomes da arquitetura mundial. Nesse ranking, Siza estava entre os quatro primeiros, mas tinha a seu favor a experiência em museus. Eu conheci os problemas do MAC de Niterói, construído pelo Niemeyer, e esse prédio teria de enfrentar questões parecidas para o cuidado com as obras, como o fato de estar em um local muito úmido. Se a gente não tivesse o cuidado de escolher um arquiteto com experiência em museus, com um acervo como esse que a cada dia fica mais valioso, a escolha seria errada.
Para além da excelência arquitetônica, o museu atinge hoje a missão de aproximar os gaúchos desse artista que muitos ainda desconhecem?Não só os gaúchos. As pessoas vêm de todos os lugares do País e do mundo para conhecer o museu e a obra do Iberê. O impacto é enorme. Sempre tive muita confiança nas diferenças do Iberê. Essa é uma observação pessoal, mas costumo dizer o seguinte, obra de arte boa de verdade não cansa. E não são muitas as obras que não cansam. Iberê é um cara que segue com a mesma força.
E como era a relação com a obra dele antes de conhecê-lo?
Ele já me impressionava muito, mas isso aumentou depois de termos os primeiros encontros. Algo que continuou crescendo, muito pelo perfil dele. O acidente que ele teve (em 5 de dezembro de 1980, em uma briga de rua no Rio de Janeiro, Iberê matou a tiros o engenheiro Sérgio Alexandre Esteves Areal e foi inocentado, dois meses depois, com o argumento de legítima defesa) marcou profundamente o final de sua vida. Mas sempre digo que o artista para ser bom não pode ser medíocre ou muito normal. Tenho uns vídeos do Iberê pintando e a impressão que tenho é de que ele está lutando esgrima com a obra.
A mostra em celebração aos 100 anos propõe um diálogo com o trabalho de Iberê e de outros 19 artistas contemporâneos. O que o senhor achou dessas “conversas”?
No momento em que vi a montagem das obras, não percebi isso. Mas atingi, depois, esse raciocínio. E o que me faz ressaltar essa capacidade dele, de dialogar com as novas gerações, é a dimensão da pessoa que ele foi. Seus traba- lhos foram uma extensão do profundo conteúdo que ele carregou dentro de si. Ele era muito crítico, um homem inconformado. O artista conformado não serve.
Estamos às vésperas da 10a edição da Bienal do Mercosul. Que balanço o senhor faz desse primeiro ciclo de 20 anos?
Cheguei à conclusão de que nada de grande se constrói sem cultura. Para o desenvolvimento do País, o investi- mento em cultura como fator educacional é peça chave. Não acho que possa haver desenvolvimento sem cultura. O desenvolvimento bate no teto e cai. Nesse sentido, tenho um conflito. O Brasil – não só ele, mas toda a América – é uma colônia nova. Analise o laço cultural que envolve os países europeus e o peso que a cultura teve para a evolução desses povos. Em termos de produção cultural, as coisas são recentes no Brasil. Para explorar esse potencial, os projetos educativos têm um papel central de aproximação e formação de público… Sem dúvida. Tanto a Bienal do Mercosul quanto a FIC têm a motivação de fazer com que as crianças e os adolescentes tenham garantido o direito de saber o que é cultura. Tivemos a chance de levar crianças às nove edições da Bienal do Mercosul. Pegue, hoje, um adolescente que visitou as nove mostras. Ele não é mais a mesma pessoa.
Como se dá sua atuação no Instituto Gerdau?
O instituto tem mais de dez mil voluntários e é totalmente voltado para a responsabilidade social, com predomínio na educação. Apoiamos uma série de instituições parceiras e participo diretamente de algumas, como a Todos Pela Educação. Minha mulher (Maria Elena Johannpeter) preside outra instituição, a Parceiros Voluntários, que tem hoje 420 mil colaboradores . Existem, no Brasil e nos 14 países em que o Grupo Gerdau atua, 2.600 instituições sociais capacitadas para receber esses voluntários.
O envolvimento do senhor com a FIC e a Bienal do Mercosul coincidiu com o advento da Lei Rouanet. Como o senhor acha que a lei pode ser aperfeiçoada?
A Lei Rouanet foi um avanço fantástico e procuramos contribuir para que ela se torne ainda melhor. Tenho trabalhado há muitos anos com José Paulo Soares Martins, diretor do Instituto Gerdau, e conseguimos mobilizar um grupo de empresas que investem para apoiar o Ministério da Cultura – MinC, em estruturação gerencial de tecnologia de gestão. O ministério tem uma atuação importante para o País. A frente de trabalho do MinC não é brincadeira. A cultura do nosso País é imensurável e, cada vez mais, a dimensão de riqueza do mundo estará na diversidade que cada população tiver. O fator econômico sempre pesou muito, mas não pode- mos trabalhar apenas na perspectiva de melhor retorno. Se não, vamos nos fechar a Rio de Janeiro e São Paulo. Nossa responsabilidade sobre o tema não está esgotado. Tenho esse aspecto quase emocional em relação ao Brasil.
Com tantas contingências, que tempo sobra para o senhor e, nessas horas, o que gosta de fazer ?
Tento reservar o pouco que sobra para o lazer, o esporte e a família. Gosto de cuidar dos meus cavalos, de ouvir boa música, principalmente música clássica – adoro Bach e Beethoven. Leio ficção, mas geralmente algo vinculado à história e ao comportamento humano. O viés profissional pesa muito para mim, pois tenho de acompanhar a evolução desse mundo louco – hoje me dia, algo próximo do impossível. O dinamismo da comunicação é um fenômeno que ainda não dá para entender direito…
O senhor é muito afetado por essa nova dinâmica?
Sou vítima disso. Aliás, sou escravo disso. A globalização exige uma competição absoluta e até mesmo a arte está globalizada. Aquele que se negar a aceitar essa realidade será engolido. Na verdade, acho que todo mundo está meio perdido. Hoje, até mesmo o processo de tomar decisões é algo complicado. Na biografia do Barão de Mauá (Mauá – Empresário do Império, Cia. das Letras), escrita pelo Jorge Caldeira, grande historiador, com ótimo conteúdo técnico e uma sensibilidade humana acurada, ele descreve que, para receber uma resposta do sócio na Inglaterra, Mauá tinha de esperar três meses. Hoje, as pessoas têm a capacidade de não conseguir aguardar três minutos para receber o retorno de um e-mail. Esse contraste denota uma loucura absoluta. É um mundo louco, mas muito interessante.
Fundação Iberê Camargo