Mídia
Com mais de 4 mil obras, acervo digital da Fundação Iberê Camargo está disponível a partir desta semana
Explorar
a intimidade e conhecer detalhes da vida e da criação de Iberê Camargo, um dos
mais importantes artistas da História da Arte Brasileira, será possível a
partir desta semanaquando ocorre o
lançamento do Acervo Digital da Fundação Iberê Camargo (FIC). Na data,
serão apresentados o hotsite e o projeto da digitalização, inicialmente em
versão beta, viabilizados por meio de patrocínio da Gerdau e da Petrobras, via
Lei de Incentivo à Cultura do Estado do Rio Grande do Sul. O evento será
realizado no auditório da FIC, a partir das 15h, e terá entrada gratuita,
mediante inscrição no site da Fundação. Os participantes irão receber
certificado e catálogo da exposição Iberê Camargo: um trágico nos Trópicos.
O
acervo digital (www.iberecamargo.org.br/acervodigital)
disponibilizará mais de 4 mil
obras e centenas de documentos, como catálogos, recortes de jornais e revistas,
correspondências, cadernos de notas e fotografias, armazenados pela esposa de
Iberê, Maria Coussirat Camargo. Das quatro mil obras, três mil estão em alta
resolução, acompanhadas de fichas técnicas, históricos e informações
relacionadas, revelando um repertório nunca visto antes em exposições.
“Estamos acompanhando uma tendência seguida pelos principais museus do mundo”,
diz o superintendente da Fundação Iberê Camargo, Fábio Coutinho.
Curiosidades
No hotsite, será possível
conferir preciosidades, como um cartão de Natal que Iberê recebeu de Jorge
Amado e Zélia Gattai e a troca de correspondência dele com o também artista
Alberto da Veiga Guignard. Em uma das cartas, Guignard sugere ao gaúcho que
conheça Jurujuba, na cidade de Niterói (RJ). A resposta de Iberê veio na forma
de uma gravura da casa da “tia Maria”, que ele fez posteriormente, quando
esteve em Jurujuba.
Outras curiosidades do acervo
são um abaixo-assinado liderado por Iberê e enviado ao presidente das
Organizações Globo na época, Roberto Marinho, criticando o fato de o
jornal O Globo dar cotações “bom”, “razoável”, “sofrível”, às
exposições de arte. “Os conceitos estéticos em todos os períodos
históricos férteis são, quase sempre, conflitantes. A eleição de um único ponto
de vista para a aferição da diversificada produção artística nacional é, por
conseguinte, extremamente perigosa como elemento cultural e injusta como
prática social ...”, diz o texto assinado por Iberê. Outro documento é um
bem-humorado cartão postal com a foto de uma cabrita, enviado da Suíça por
Mário Carneiro, fotógrafo do Cinema Novo e amigo de Iberê, em 1953. Na
correspondência, Carneiro escreveu: “Meu caro professor, talvez ainda hoje te
escreva longamente. O que não impede que te mande este instantâneo da tua
cabrita, que veio comigo pastar nestas alturas. Um abraço, Mário.”
Atualização contínua
O projeto Digitalização e
Disponibilização dos Acervos da Fundação Iberê Camargo foi criado para
oferecer a estudantes, pesquisadores, professores, colecionadores e comunidade
em geral um amplo acesso às obras do artista e documentos que fazem referência
a ele. “É um projeto vivo e em crescimento constante, um trabalho de pesquisa e
disponibilização que seguirá sendo atualizado, sempre apresentando novas
relações, complementação de dados e de documentos de forma contínua”, diz o coordenador
do projeto, Gustavo Possamái. Segundo ele, mais adiante será possível que sejam
realizadas novas pesquisas e aproximações com a obra de Iberê Camargo, tanto a
partir de seus escritos e depoimentos, quanto por meio de comentários críticos
elaborados por teóricos e historiadores do campo das artes.
O acervo estará organizado em
dois núcleos: de obras e documental. No caso dos documentos, serão apresentados
aqueles que citam diretamente as obras da coleção, por meio de imagem ou de
comentários, criando uma bibliografia de cada obra. Incluem-se nesse escopo
todos os eventos documentados dos quais o artista participou, identificados
através de pesquisas, já que, como lembra Eduardo Haesbaert, coordenador do
acervo da FIC, “o artista e sua esposa, Maria Camargo, tiveram preocupação
constante de preservar e documentar os 60 anos de produção artística de Iberê,
que hoje servem como registro de sua trajetória”.
A iniciativa, além de
permitir um relacionamento de dados entre os dois acervos da Fundação, agilizará
o controle, disseminação e democratização das informações, ampliando o
desenvolvimento de ações de pesquisa. A próxima etapa da FIC é aprofundar o
mapeamento histórico e fortuna crítica das obras, possibilitando o crescimento
da visão sobre a produção do artista e sua inserção no campo da arte. No
projeto ainda consta a intenção de se produzir áudio-descrição para deficientes
visuais. A Fundação Iberê Camargo também pretende aumentar o cadastro e
exibição de um número maior de obras de Iberê, incluindo as que integram outras
coleções e permitindo apresentar, pela primeira vez, a obra completa do
artista.
SERVIÇO
Acervo digital da Fundação Iberê Camargo disponível a partir desta semana.
Acesso: www.iberecamargo.org.br/acervodigital
O
ARTISTA E O FRASISTA
“Tenho sempre presente
que a renovação é uma condição de vida. Nunca me satisfaz o que faço. Ainda sou
um homem a caminho.”
De
excepcional habilidade com o pincel e extraordinária intimidade com as
palavras, Iberê Camargo construiu uma trajetória em que pintura e literatura
quase se confundem. Os quadros que pintou e as frases que cunhou têm a mesma
marca: o abandono, a dor, o desespero. O crítico Augusto Massi afirmou que
Iberê é um caso raro de um grande pintor que é também um notável escritor. No
livro de contos A Gaveta dos Guardados, escrito entre 1993 e 1994, Iberê
evidencia que conhecia tão bem o colorido dramático das palavras, quanto o
movimento do pincel.
“O
drama, trago-o na alma. A minha pintura, sombria, dramática, suja, corresponde
à verdade mais profunda que habita no íntimo de uma burguesia que cobre a
miséria do dia-a-dia com o colorido das orgias e da alienação do povo. Não faço
mortalha colorida.”
Filho de
ferroviários, praticamente cresceu desenhando. Nascido aos 18 de novembro de
1914, e aos quatro anos já produzia os primeiros rabiscos. Sua trajetória
enigmática encerrou-se aos 79 anos, quando, no limite da enfermidade, pintou
“Solidão” seu último quadro. Morreu no dia 8 de agosto de 1994, vítima de
câncer em Porto Alegre.
“Arte,
para mim, foi sempre uma obsessão. Nunca toquei a vida com a ponta dos dedos.
Tudo o que fiz, fiz sempre com paixão. No fundo, um quadro para mim é um gesto,
um último gesto.”
As
sucessivas transferências do pai Adelino fizeram-no peregrinar na juventude
entre Restinga Seca, Jaguari, Canela e Santa Maria, onde, aos 13 anos, então
morando com a avó, começou seu aprendizado de pintura, na Escola de Artes e
Ofícios. Sua iniciação com a arte pedagógica, no entanto, foi interrompida
abruptamente. Um desentendimento com um professor marista que ensinava Letras
abreviou seu estágio na primeira escola de artes que freqüentou.
“As
figuras que povoam minhas telas envolvem-se na tristeza dos crepúsculos dos
dias de minha infância. Nascem da minha saga, da vida que dói. Sou impiedoso e
crítico com minha obra. Não há espaço para alegria. Toda a grande obra tem
raízes no sofrimento. A minha nasce da dor.”
Iberê
viria repetir a rebeldia contra os mestres anos depois no Rio de Janeiro.
Aconselhado por Portinari, cuja obra não admirava, ingressou na Escola
de Belas Artes, mas, inconformado com os padrões rígidos da academia, ficou
pouco a vontade para prosseguir, encerrando rapidamente suacarreira
universitária que apenas começava. Depois da breve experiência na Escola de
Belas Artes, tornou-se aluno de Guignard, um dos mestres que influenciou sua
pintura.
“No
modernismo, ou você se parecia com Segall ou com Portinari. Eram dois pólos e
você tinha que estar entre um ou outro.”
Antes
de se transferir para o Rio, conheceu Maria, em Porto Alegre, com quem casou em
1939. Maria Coussirat, estudante de pintura graduada do Instituto de Belas
Artes e professora de desenho da escola primária, foi sua companheira por toda
a vida. Suapaixão pela pintura foi crescendo. Em companhia de Vasco
Prado, desenhava tipos de rua, sem jamais abandonar sua origem interiorana.
“A
memória é a gaveta dos guardados, repito para sublinhar. O clima de meus
quadros vem da solidão da campanha, do campo, onde fui guri e adolescente. Na
velhice perde-se a nitidez da visão e se aguça a do espírito.”
Em
1947, já no Rio de Janeiro, a chance de conhecer o Velho Continente veio com o
disputadíssimo Prêmio de Viagem à Europa, com o óleo “Lapa”, destaque no Salão
de Arte Moderna, atualmente no Museu Nacional de Belas Artes. Na Europa viu de
uma só vez o que conhecia apenas através de escassas informações. Tornou-se
aluno de De Chirico em Roma e Lhote em Paris. Viajou por vários países da
Europa para ver arte. Regressando ao Brasil, nos fins de novembro de 1950,
recomeçou a pintar, ainda atordoado pelo que tinha visto e ouvido.
“Continuo
no mesmo rumo, pintando as minhas ladeiras, essas mesmas ladeiras que subo com
tanta fadiga. E naturalmente continuo fiel ao meu estilo de arte, construindo o
quadro sem recorrer a elementos formais, transformando a natureza em ritmos e
sensações coloridas.”
Mestre
da pintura moderna no Brasil, Iberê recolheu recortes da infância para retratar
sua obra. Em 1958, uma hérnia de disco, provocada pela suspensão de um quadro
no cavalete, obrigou-o a trabalhar quase que exclusivamente no ateliê. Seja por
essa razão ou por motivos inconscientes, seus quadros começaram pouco a pouco a
mergulhar na sombra. O céu das paisagens tornou-se azul-escuro, negro, dando a
sua obra um conteúdo de drama. Surge então a produção em que Iberê retrata
carretéis sobre a mesa e no espaço.
“Os
carretéis são reminiscências da infância. São combates dos pica-paus e dos
maragatos que primo Nande e eu travávamos no pátio. Eles estão impregnados de
lembranças. Pelas estruturas de carretéis cheguei ao que se chama, no
dicionário da pintura, arte abstrata.”
Depois de
participar de exposições internacionais em Nova York e Tóquio e de ganhar o
prêmio de gravura na Bienal do México e de melhor pintor nacional na VI Bienal
de São Paulo, Iberê integra várias exposições coletivas e individuais no Brasil
e exterior. Em 1982, Iberê e Maria voltam a residir em Porto Alegre, mas mantêm
o ateliê do Rio de Janeiro, dividindo seu tempo entre as duas cidades. Os
ciclistas dos anos 80 são personagens incorporados à obra iberiana, quando o
artista retorna ao Rio Grande do Sul.
"Voltei
para o Sul porque a saudade estava grande demais. À medida que envelhecemos,
parece que a infância fica mais perto. Sentimos vontade de reencontrar os
primeiros amigos e tudo que foi nosso."
Mudando-se
para o bairro Cidade Baixa, próximo ao Parque da Redenção, Iberê iniciou um
íntimo convívio com o parque e com seus freqüentadores, sobretudo com os
ciclistas. Velozes e muitas vezes sem metas, a não ser pedalar, personificavam
um pouco do sentimento do próprio artista. Os ciclistas de Iberê Camargo
refletem muito do próprio pintor: um ser em busca de suas verdades e raízes.
Marcam os personagens mórbidos que povoam o imaginário do artista no final de
sua vida.
“Sou
um andante. Carrego comigo o fardo do meu passado. Minha bagagem são os meus
sonhos. Como meus ciclistas, cruzo desertos e busco horizontes que recuam e se
apagam nas brumas da incerteza.”
A morte de
Iberê não encerrou um ciclo; deu início a outro: o do culto à obra e à memória
de um dos artistas mais brilhantes e instigantes do Brasil. Através dos anos,
críticos e artistas de todas as escolas tentam desvendar os mistérios e a
profundidade de sua criação.
“Ainda sou um homem a caminho.”
Fundação Iberê Camargo