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Maior exposição de William
Kentridge já apresentada na América do Sul chega à Fundação Iberê Camargo
Mostra do artista sul-africano conta com 31
esculturas, 32 desenhos, 26 filmes e animações, 115 gravuras e duas
videoinstalações
Em 2007, na
6ª Bienal do Mercosul, a videoinstalação de William Kentridge dividia a atenção
entre dezenas de outros artistas, como normalmente acontece em mostras
coletivas de arte contemporânea.
Agora, o
sul-africano retorna a Porto Alegre em sua primeira grande mostra individual na
América do Sul. É uma oportunidade de conhecer com maior proximidade a extensa
e diversa produção do artista, realizada nas zonas de intercâmbio entre
desenho, gravura, pintura, escultura, vídeo e instalação.
A
exposição William Kentridge: Fortuna apresentará, na Fundação
Iberê Camargo (FIC), 31 esculturas, 32 desenhos, 26 filmes e animações, 115
gravuras e duas videoinstalações produzidos desde 1989, incluindo trabalhos
inéditos. Tamanho recorte de obras estará distribuído em três dos quatro níveis
do prédio às margens do Guaíba. Depois da inauguração na quinta-feira para
convidados, a visitação gratuita estará aberta ao público a partir de
sexta-feira.
Em seu estúdio, William Kentridge explora diferentes linguagens
Autor de uma
obra que confunde categorias artísticas tradicionais, especialmente borrando
fronteiras entre cinema e artes visuais, Kentridge, 57 anos, desenvolveu uma
linguagem própria usando carvão, papel e uma câmera. Seus filmes desenhados –
ou desenhos filmados – o transformaram em um nome conhecido no circuito
internacional nos anos 1990. Desde então, já participou das principais mostras de
arte, como a Documenta de Kassel (1997, 2003, 2012), na Alemanha, e as Bienais
de Veneza (1993, 1999, 2005) e São Paulo (1998), além de exposições individuais
no MoMA (1998, 2010), no Metropolitan Museum of Art (2005), ambos em Nova York,
e no Louvre (2010), em Paris.
Na Capital,
serão apresentadas 25 esculturas a mais do que no Instituto Moreira Salles, no
Rio, onde começou a turnê de William Kentridge: Fortuna, que
permanece até o fim de maio na FIC e, em agosto, segue para a Pinacoteca do
Estado de São Paulo. A parceria das três instituições viabilizou a mostra
exclusiva para o Brasil.
O ineditismo
da exposição é reforçado por um trabalho feito especialmente para a primeira
individual do artista no país. Nas páginas de uma edição em português do livroMemórias
Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, Kentridge filmou uma
intervenção com desenho e colagem – na qual, inclusive, coloca-se em cena. O
"flipbook" (livro de artista animado) ganhou o título De Como
Não Fui Ministro d'Estado. O artista comentou que a escolha do clássico
machadiano, narrado por um "defunto-autor", deu-se pela possibilidade
de transformar o absurdo em algo realista.
Segundo a
curadora da mostra, Lilian Tone, o espaço expositivo do prédio da FIC tornou
possível apresentar obras de maior dimensão do que no Rio, além de permitir que
a montagem das esculturas privilegiasse os diferentes pontos de vista possíveis
pela arquitetura interna. Ao relacionar diferentes trabalhos, William
Kentridge: Fortunabusca revelar, mais do que obras isoladas, um conjunto
que apresente o itinerário técnico e poético de um artista em constante
elaboração.
Lugar de
invenção
Em
seu estúdio, William Kentridge explora diferentes linguagens
Segundo a curadora Lilian Tone, artista trabalha com o conceito
de "acaso dirigido". Leia entrevista
William
Kentridge é o tipo de artista que restringe ao estúdio o seu espaço de
invenção. No isolamento, ele se volta a um processo experimental guiado pelo
"acaso dirigido".
O artista
começou a desenvolver seu peculiar modo de produção nos anos 1980. Desenha com
carvão ou pastel e fotografa. A seguir, borra e redesenha na mesma superfície,
fotografando cada alteração. E, assim, repetidas vezes. A técnica de animação é
o stop motion, em que os diversos quadros são exibidos em sequência. Apagando
desenhos e criando outros novos, mas mantendo vestígios dos traçados
anteriores, Kentridge constrói e desconstrói signos, sugerindo questões como
memória, esquecimento e passagem do tempo.
Vem daí
também o reconhecido tom político de seu trabalho, com sutis referências à
história da África do Sul e ao apartheid. Judeu de ascendência lituana,
Kentridge nasceu em 1955, em Joanesburgo, testemunhando, na condição de
integrante da minoria branca, o regime de segregação racial que vigorou entre
1948 e 1994. Mas o tratamento dado aos traumas ultrapassa as barreiras de seu
país, oferecendo uma experiência pessoal sem ser autobiográfica ou intimista.
Foi assim
que surgiu Drawings for Projection ("Desenhos para
projeção"), primeiro projeto pelo qual ficou conhecido fora da África do
Sul. A série de curtas foi iniciada em 1989, e o vídeo mais recente é de 2011.
Na Fundação Iberê Camargo, William Kentridge: Fortuna apresentará,
em conjunto, os 10 filmes, juntamente a 23 desenhos usados nos trabalhos.
Maior exposição de William Kentridge já apresentada na América do Sul
chega à Fundação Iberê Camargo
Sem ser
cronológica ou temática, a mostra pretende demonstrar que diversidade e vigor
sustentam-se ao longo de mais de duas décadas de produção. A curadora Lilian
Tone buscou mostrar como se dão os processos criativos de Kentridge em seu
estúdio – um ambiente mais de invenção e menos de descoberta.
– A proposta
é sustentar um olhar retrospectivo da produção do Kentridge, representando-a de
forma a manter a profusão de ideias e plataformas, por vezes incoerentes,
presentes no processo artístico – diz Lilian.
Entrevista - Lilian Tone, curadora
Zero Hora – Como
o processo criativo desenvolvido por Kentridge no estúdio se relaciona com o
conceito de "Fortuna", conforme o título da mostra?
Lilian Tone – Ao iluminar o processo de trabalho do artista, em vez de eleger
um tema em particular, esse recorte nos possibilita fazer do estúdio do
artista, em Joanesburgo, cenário e personagem em sua produção. Nesse espaço,
Kentridge busca formas para ideias fragmentadas e contraditórias, seguindo como
princípio a noção de "Fortuna". Para ele, "Fortuna" é uma
espécie de acaso dirigido, descoberta ou sorte comum a toda busca incessante e
apaixonada, algo distante do controle racional e da estatística fria. Para mim,
"Fortuna" se refere a uma condição do trabalho artístico em estado
constante de construção; à celebração da excentricidade, mas não em detrimento
do engajamento político.
ZH – É possível
situar a produção do artista, considerando que suas obras se contaminam por
diferentes linguagens?
Lilian – A
produção de Kentridge desafia classificações diferenciadoras de mídia e
linguagens, o artista frequentemente as sobrepõem e as confunde. A exposição
busca iluminar justamente a interrelação das várias linguagens, disciplinas e
elementos iconográficos utilizados pelo artista.
ZH – Na poética
de Kentridge, que lugar ocupam a memória social da África do Sul e o histórico
do apartheid?
Lilian –
Referências à memória social e política da África do Sul e ao legado traumático
deixado pelo apartheid permeiam toda a obra do artista, porém, nunca de modo
rígido, mas sim poético. Esses temas são elaborados pelo artista sempre com um
certo grau de dúvida e incerteza. Em 1992, Kentridge declarou: "Nunca
procurei fazer ilustrações do apartheid, mas os desenhos e filmes com certeza
foram provocados e se alimentaram da sociedade brutalizada que ele deixou em
seu rastro. Tenho interesse em arte política, o que quer dizer uma arte de
ambiguidade, contradição, gestos incertos e finais incompletos. Uma arte (e uma
política) em que o otimismo é mantido em cheque, e o niilismo, à
distância."
Fundação Iberê Camargo