Press releases
28/03/2016
Iberê Camargo: Diálogo no Tempo apresenta charges políticas, primeiro outdoor, predominância de desenhos e gravuras dos anos 80
O
olhar do visitante irá se surpreender com os 116 trabalhos (20 pinturas,
27 gravuras em metal, serigrafias e litografias, 54 desenhos, 17
charges com o pseudônimo de Maqui e seis estudos para
outdoor), selecionados pela curadora Angélica de Moraes para esta exposição que
será exibida na Fundação Iberê Camargo, de 9 de abril de 2016 a
26 de março de 2017
“É
uma investigação sobre o DNA da obra de Iberê Camargo focada no período de
retorno ao Rio Grande do Sul, nos anos 1980, quando ele empreendeu uma inflexão
em sua obra, com um decisivo retorno à figura humana. Mais do que fazer um
recorte do acervo da Fundação Iberê Camargo, desde logo entendi tratar-se de
identificar e oferecer ao público algumas chaves de leitura para a fruição da
densa e caudalosa produção realizada pelo artista ao longo de mais de meio
século de atividade ininterrupta”, diz a curadora e jornalista Angélica de
Moraes (leia a íntegra da sua entrevista com Iberê realizada em abril de
1994 para o jornal Estado de São Paulo, quando eram preparados exposições e
livros em homenagem aos 80 anos do pintor, que não chegou a completá-los).
Em Iberê
Camargo:Diálogo no Tempo, que ficará em exposição de9 de
abril de 2016 a 26 de março de 2017, pela primeira vez será exibida
a série completa da suíte serigráfica Manequins,
inclusive com algumas provas antes da impressão, em que fica evidente a insaciável busca de Iberê pela
melhor forma de solucionar um trabalho. Também pela primeira vez a Fundação
Iberê irá apresentar a série de desenhos Desastre, em que Iberê retratou
carcaças de carros amontoados em um ferro-velho. “Soturnas reflexões sobre a velhice
e a obsolescência patrocinada pelo consumismo”, diz Angélica.
Em uma das
salas do percurso principal foi situada a
documentação fotográfica (making-off) e os estudos para a primeira incursão de
Iberê no grande formato dos outdoors, em que resolveu produzir uma releitura
apocalíptica da criação do homem feita por Michelângelo para a Capela Sistina,
exibida em 1984 nas ruas de Porto Alegre.
Junto
a esse trabalho e seus esboços, será exposta uma seleção de 17 charges que
o pintor realizou com o pseudônimo de Maqui (chamavam-se
maquis os soldados da resistência francesa à invasão alemã da França, na
Segunda Guerra Mundial). “Nessas charges, algumas publicadas na imprensa, na
época, Iberê exercita a ironia mordaz, impiedosa, que dedicava aos políticos
nacionais. Nada mais atual”, destaca a curadora.
“A
predominância de gravuras e desenhos pretende frisar uma das características
fundamentais da obra de Iberê: o pensamento gráfico, o pensamento criativo que
deriva do desenho. Nele se observam os exercícios de acurada observação da
figura e as infinitas conotações que o artista construía para nos aproximar
dessas humanidades”.
Entre
as pinturas, a tela Fantasmagorias IV, de 1987, assume o
protagonismo da mostra. “As obras escolhidas derivam ou prenunciam esse trabalho.
As três figuras esqueléticas da composição parecem furar com seus ossos a
carnadura da tinta. Os azuis e os pretos que visitam boa parte da obra do
artista nesse período dividem presença com os traços brancos que conferem
dramaticidade escultórica ao conjunto. “Minha terra reclama meus ossos”, disse
certa vez Iberê”, conta a curadora.
Crítica
de artes visuais, jornalista cultural e curadora, a gaúcha de Pelotas radicada
em São Paulo desde 1986, Angélica de Moraes, assinou inúmeras exposições
no País, escreveu sobre artes visuais no Caderno 2 do jornal O Estado de São
Paulo durante oito anos, foi editora da Select e hoje escreve para veículos
especializados como a Cult, Arte! Brasileiros e ArtNexus. É autora ou coautora de 11 livros, o
mais recente deles O Valor da Obra de Arte (Editora Metalivros, 2014).
“Conheci Iberê Camargo pessoalmente quando de seu retorno a Porto Alegre, em
1982. Nessa época, eu assinava uma página semanal de artes visuais no jornal
Zero Hora. Entrevistei-o por diversas vezes, desde então. Era com uma admiração
crescente que passei a conhecer de perto o artista e a obra. Ali, eu não era
repórter: era aluna. Estava diante do privilégio de tê-lo como cicerone de sua
arte. Foram muitas as descobertas nesses momentos de formação. Como quando,
fazendo uso de uma dessas luminárias de oficina mecânica de carros, que tem uma
lâmpada portátil protegida por uma grade, aproximava a luz de suas telas mais
densas e escuras, e anunciava: “Parece preto, não? Mas olha agora: é azul!”
Mostrava o motor, as engrenagens de sua pintura”.
Segundo Angélica de Moares, essas são as
chaves de leitura para a obra de Iberê:
Ø O
primeiro ponto a ser elencado é a importância conferida pelo artista às
superfícies líquidas, aos reflexos cambiantes que deformam o que espelham. Algo
que logo passou de assunto a linguagem, com a tinta farta e revolta assumindo
profundezas aquáticas ou assomando fragmentos de luz em matéria lodosa, mexida
e remexida. Isso fica bem nítido desde a tela Jaguarí (1941).
Ø Há
fusão entre gravura (mundo gráfico, da linha) e pintura (mundo da tinta densa e
da cor). As vigorosas linhas de tinta na tela mais indicam a ação do traço do
que descrevem os elementos da cena pintada.
Ø Uso
preciso e econômico da linha. A forma se estabelece a partir dos traços
essenciais da figura. O próprio Iberê admite que foi nas aulas de Guignard que
aprendeu a valorizar a precisão da linha que seu mestre tinha ido buscar em
Domenico Ghirlandaio e Paolo Uccello, pintores italianos do século XV.
Ghirlandaio e Uccelo pintavam sobre madeira e traçavam nela, com estilete, os
limites da figura. Guignard usava lápis de grafite duro, que arranha e deixa
uma marca impossível de apagar do papel. Iberê também adquiriu esse traço
decisivo tanto na sua vasta produção de gravura como na pintura.
SERVIÇO
O
QUÊ| QUANDO| Iberê Camargo: Diálogo no Tempo -
9 de abril de 2016 a 26 de março de 2017
ONDE | Av. Padre Cacique, 2000 – 51 32478000
ABERTURA
DA EXPOSIÇÃO:
9 de abril (Sábado), 11h
HORÁRIO DE
FUNCIONAMENTO| De terça a domingo (inclusive feriados), das 12h às 19h (último
acesso às 18h30)
ENTRADA FRANCA| As
empresas Gerdau, Itaú, Vonpar e Banco Votorantim garantem a gratuidade do
ingresso
SITE | www.iberecamargo.org.br
TWITTER | @F_IbereCamargo
FACEBOOK | www.facebook.com/fundacaoiberecamargo
Google+: Fundação
Iberê Camargo
YOUTUBE | http://www.youtube.com/user/FundacaoIbereCamargo
INSTAGRAM |
@F_IbereCamargo
TRANSPORTE | As
linhas regulares de lotação que vão até a Zona Sul de Porto Alegre param em
frente ao prédio, assim como a linha de ônibus Serraria 179. É possível
tomá-las a partir do centro da cidade ou em frente ao shopping Praia de Belas.
O retorno pode ser feito a partir do Barra Shopping Sul, por onde passam
diversas linhas de ônibus com destino a outros pontos da cidade.
Entrevista de Iberê Camargo para Angélica de Moraes, no O
Estado de São Paulo, que será publicada no catálogo da exposição
Conheci Iberê Camargo quando de seu retorno a Porto Alegre, em 1982.
Entrevistei-o por diversas vezes, desde então. Era com uma admiração
crescente que passei a conhecer de perto o artista e a obra. Era um vigoroso
testemunho de arte e de vida. Com Iberê, não cabia exercitar a tal isenção
jornalística. E, aliás, para quê? Ali, eu não era repórter: era aluna. Estava
diante do grande privilégio de tê-lo como cicerone de sua arte. Foram
muitas as descobertas nesses momentos de formação. Como quando, fazendo uso de
uma dessas luminárias de oficina mecânica de carros, que tem uma lâmpada
portátil protegida por uma grade, aproximava a luz de suas telas mais densas e
escuras e anunciava: “Parece preto, não? Mas olha agora: é azul!” Mostrava o
motor, as engrenagens de sua pintura.
Essas lições de cor eram dadas no acervo particular do artista, que invadira e
ocupara completamente o que deveria ser a sala de visitas da casa simples,
quase espartana, sem luxos nem ornamentos inúteis. O valor ali era de outra
natureza. Pilhas de quadros se alinhavam encostadas às paredes, por onde o
pintor circulava e fazia ver esse labirinto de preciosidades. Gastava seu tempo
com prodigalidade, abrindo gavetas de mapotecas do ateliê para mostrar tiragens
recentes de gravuras. Folheava cadernos de desenho e fazia retratos de seus
entrevistados. Havia tamanha atenção nessa captura do personagem a sua frente
que era surpreendente observar, ao final, que o retratado se transformara em
magistral pretexto para experimentações de formas.
Com sua chegada, comparável à de um meteoro incandescente caindo na placidez de
uma lagoa, o meio cultural de Porto Alegre expandiu-se de imediato. O patamar
de excelência em arte ganhou outros critérios, os desafios estéticos ficaram
maiores. Em vez de se olhar de longe um pintor fundamental ao panorama
brasileiro, ele estava bem ali, em seu ateliê, nos fundos da casa térrea em que
morava, na Lopo Gonçalves, na Cidade Baixa.
A voz calma, grave, mansa, dizia as coisas mais densas de um modo simples. Como
se nascesse naquele momento uma conclusão que certamente o homem culto que
sempre foi já tinha decantado em vivências e leituras. A acentuação, a ênfase,
era dada pelo olhar penetrante sob as sobrancelhas hirsutas. Um sorriso
discreto brincava no rosto nos momentos em que exercitava sua verve irônica.
Quando acionava o humor impiedoso, tão ácido quanto os líquidos corrosivos que
usava para executar suas gravuras em metal, o riso estalava, seco. Mas logo
espalhava um brilho maroto nos olhos, um convite à cumplicidade com o que
dissera. Iberê tinha um olhar acolhedor, propício a chamar para mais perto,
para esmiuçar argumentos e ideias. Quase no mesmo diapasão em que, depois do
jantar doméstico, no ritmo das pausas de sua fala, acionava a metódica tarefa
de quebrar os cantos de uma bolacha de água e sal quadrada até transformá-la em
pequeno círculo, ponto final da sua refeição.
A dramaticidade do embate vital em que se jogava de corpo e alma ficava para as
batalhas com as tintas na frente da tela, do papel ou das matrizes de
gravura. Sim, o jogar-se inteiro em tudo o que fazia talvez seja a maior, a
fundamental lição que espalhava. Já no leito de morte, fez questão de me
chamar para integrar uma entrevista coletiva que daria à imprensa. Preferi
passar a dura tarefa para um colega. Já vivenciando o luto iminente de sua
perda, não achei em mim a coragem de Iberê para enfrentar a tragédia e a
situação. Não suportaria vê-lo no fim. Um guerreiro de tamanha estatura
artística a gente da planície como eu gosta de lembrar em plena ação, na frente
da tela ou do papel em branco, com o gesto infinitamente treinado
mas, ainda assim, sensível à pulsação do momento único, do instante que
inscrevia com traço ágil na dimensão eterna da arte.
Em abril de 1994, quando eram preparados exposições e livros em homenagem aos
80 anos do pintor (que não chegaria a completá-los), fiz minha última
entrevista gravada com Iberê, para o jornal O Estado de S. Paulo. Aconteceu no
amplo ateliê com pé-direito duplo situado na parte posterior de sua casa, na
rua Alcebíades Antônio dos Santos. Ao entrar no local, fui surpreendida com a
plateia de amigos de Iberê que tinham vindo assistir a entrevista, acomodados
em uma fileira de cadeiras de frente para as nossas. Situação inédita na vida
da repórter mas prática que depois soube ter se tornado habitual para o
artista, cada vez mais cercado de amigos e sempre hospitaleiro com quem o
visitava.
O valente gravador, munido de fita cassete e microfone embutido, fez o possível
para dar conta do recado. As conversas paralelas e a acústica do
local, no entanto, transformaram a transcrição dessa fita em uma duríssima
escavação arqueológica de sons. Alguns fragmentos foram publicados no jornal O
Estado de S. Paulo (7/5/1994). A maior parte desse testemunho, porém,
permaneceu submersa, inédita, no fundo de uma gaveta. O cineasta Joel Pizzini,
sabendo dela, copiou-a para utilizar trechos no seu filme O pintor (1995). Duas
décadas depois, retornei a essa fita e, com auxílio de um
laboratório profissional de restauro digital de sons, tentei resgatar um pouco
mais daquele momento precioso.
A transcrição a seguir reúne partes dessa fita para sempre enigmática em muitos
trechos. Somei a elas frases selecionadas de entrevistas que Iberê me
concedeu e publiquei no jornal Zero Hora (Porto Alegre) e em Afinal, revista
paulistana semanal de alcance nacional mas vida breve (1985 a 1987).
Como um
filho de ferroviário, morando em uma cidadezinha do interior do Rio Grande do
Sul, pôde sonhar em ser pintor e, audácia maior, se tornar um dos mais
importantes pintores da história da arte no Brasil?
Acredito
que a pessoa nasce com um dom e simplesmente o desenvolve. Foi o que fiz. Se
sou ou não um pintor importante não sou eu que devo dizer.
Mas você
teve que lutar contra uma condição pouco propícia.
A família é sempre amiga. O problema é o meio. Até hoje continuo lutando para
fazer o que faço, sempre enfrentando obstáculos. Agora é a saúde. A
luta já foi contra o descaso e a indiferença. Já foi contra as dificuldades de
importação de tintas decentes. O artista é muito explorado, muito usado.
Para fazer uma obra séria, o artista brasileiro tem que dar seu sangue. O
Brasil é contra o brasileiro. Somos antropófagos.
Em que
momento você situa o início de sua vida profissional: quando pintou o primeiro
retrato de Maria, em 1940, ou quatro anos depois, quando fez exposição
individual em Porto Alegre?
Comecei minha vida profissional no Rio de Janeiro, quando realizei minha
primeira exposição individual no prédio do Ministério da Educação, em 1946.
Foi quando comecei a viver do meu trabalho, vender meus quadros. Antes disso eu
era bolsista, vivia do que ganhava para estudar.
O Rio
daquela época tinha Djanira, Antônio Bandeira, Maria Leontina, Guignard. Como
era para o jovem Iberê a convivência com esses artistas?
Eles eram uma equipe de luta, grandes exemplos. Djanira era uma mulher de muita
garra. Tinha também Milton Dacosta. O Rio era a capital do País, o
centro cultural mais importante. Depois, com a mudança da capital para
Brasília, o Rio se esvaziou. Hoje é a cidade do crime, do assalto e da
insegurança. Só a paisagem continua a justificar seu título de maravilhosa.
Certa
vez você disse que Deus foi acadêmico quando criou o Rio.
Pois é. Não acho que a baía de Guanabara seja uma bela criação. Há outros
pontos da geografia carioca que gosto mais. Deus tem seus erros. O principal
deles foi criar o homem.
Você foi
grande amigo de Maria Leontina. Como ela era?
Maria
Leontina foi uma pessoa muito íntegra, muito talentosa, um grande caráter.
Quando ela morreu, em 1984, fiquei tão chocado que realizei, no
calor da emoção, uma pintura em sua memória. Chamei-a de Mulher com chapéu
preto.
Como foi
seu convívio com Guignard?
Guignard era um mestre, um pintor no sentido total da palavra. Foi um amigo
muito querido e com quem tive grande identidade. Guignard amava o desenho, a
precisão da linha traçada com lápis de grafite duro. Isso era influência,
acredito, de dois pintores que Guignard amava: os italianos do Quatrocentos
(século XV) Paolo Uccello e Ghirlandaio. Eles pintavam sobre madeira e
precisavam gravar a imagem com um estilete afiado antes de usar o pincel, daí
aquelas linhas tão precisas.
Como
eram as aulas com Guignard?
Guignard não era um teórico, era um instintivo. Dizem que arte é coisa mental.
Não aceito isso. Se fosse assim, Volpi não tinha pintado um único
quadro. O pintor nasce feito. Escola de pintura só serve para reunir as
pessoas, facilitar amizades e casamentos.
Como
você reagiu ao impacto cultural de morar na Europa? Ao ver todas
aquelas obras de arte nos museus não teve a sensação intimidante de que tudo já
estava feito?
Acho que sou muito atrevido. Porque, afinal, é uma temeridade alguém que mora
no Terceiro Mundo querer fazer arte de Primeiro Mundo, uma pintura
maiúscula. A pintura nunca está feita porque sou eu que começo a minha pintura.
As coisas estão aí no mundo, a maneira de vê-las é que é particular
de cada um. Não vou negar o talento de Picasso mas, de certa forma, para ele
foi bem mais fácil. Picasso tinha todos aqueles Velásquez para olhar em
Barcelona. Tinha acesso a Cézanne, Manet e Van Gogh no original e não em
reproduções em preto e branco. Eu me considero um submarino, um sujeito que
afundou a cabeça e saiu por baixo d’água, buscando o rumo pela intuição. É
temeridade, é loucura, é sonho. Mas que importa que eu chegue ou não? O que
importa é que eu tentei.
Se a
gente tivesse que fazer uma árvore genealógica da arte brasileira, você se
colocaria em que ramo, descendente de que raiz?
Não sei. Acho que caminho à margem. Tenho ideias muito particulares do mundo.
Texto da curadora Angélica de Moraes para o catálogo da
mostra Iberê Camargo: Diálogo no Tempo
Genealogia de traços e tintas: proposta de leitura
Esta
exposição resulta de uma investigação sobre o DNA da obra de Iberê Camargo.
Mais do que fazer um recorte do acervo da Fundação, honrosa tarefa que a
direção da instituição me confiou, desde logo entendi tratar-se de identificar
e oferecer ao público algumas chaves de leitura para a fruição da densa e
caudalosa produção realizada pelo artista ao longo de mais de meio século de
atividade ininterrupta. Era preciso colocar lado a lado trabalhos que
estabelecessem os segmentos dessa hélice de cromossomos de traços e tinta, os
estilemas que se desdobraram em infinitas combinações para estabelecer as
características da contribuição estética do autor.
Diante
da imensidão do objeto de estudo, esta pesquisa só pode ser assumida como
idiossincrática e sem qualquer intenção de firmar norma ou estabelecer
verdades. A ênfase na produção dos anos 1980 foi outra decisão pessoal: essa
época demarca o período de meu convívio mais estreito com Iberê. Penso que só
podemos tratar com alguma verdade do que conhecemos de perto.
Foi
também nos anos 1980 que Iberê empreendeu uma inflexão em sua obra, com um
decisivo retorno à figura humana (embora, como bem sabemos, nunca tenha
abandonado completamente a figuração, mesmo em suas fases mais abstratas). Uma
figuração com onipresentes mãos espalmadas em espanto.
O
primeiro ponto a ser elencado é a importância conferida pelo artista às
superfícies líquidas, aos reflexos cambiantes que deformam o que espelham. Algo
que logo passou de assunto a linguagem, com a tinta farta e revolta assumindo
profundezas aquáticas ou assomando laivos de luz em matéria lodosa, mexida e
remexida.
A
tela Jaguarí (1941) testemunha a fundação desse vocabulário
pictórico que iria acompanhar, através de diversos temas e paletas de cores, o
desenvolvimento da linguagem do pintor, gravador e desenhista. Há ali já outra
característica decisiva: a fusão entre o pictórico e o gráfico, estabelecida
pelas vigorosas linhas de tinta que mais indicam ação do que descrevem os
elementos da cena. A matéria farta, quase esculpida pelo pincel, anota e guarda
a pulsação do momento em que foram capturadas: em pleno vôo. Há agilidade ao eleger e
singrar essencialidades.
Algo
bem distante da costumeira placidez bordada de minúcias que costumava
identificar o gênero paisagem na história da pintura até que nela aportassem os
expressionistas, irmãos de sangue de Iberê. (...) Lembro-me dos salgueiros-chorões que
tocavam com seus longos ramos esse espelho baço. Canoas coloridas ancoradas às
margens; outras vezes, movimentando-se preguiçosas à força de remos indolentes.
Essa visão instigou jovens estudantes de belas-artes, entre eles, Maria, minha
mulher. Foi ali, à margem desse Riacho, que pintei meu primeiro quadro e onde
começou nosso namoro. Com espessa pasta – a tela e as tintas eram dela – fixei
a luz fugitiva dessa manhã de sol sobre aquelas águas lodosas. Árvores
desgalhadas, surradas pelo vento, apontam para um céu de cobalto. Plasmei essa
imagem: assim começa o pintor. Não se pergunte para onde vão as águas, que
andam, que andam, que nunca param e não se cansam. (“O Riacho”, in Camargo,
Iberê; Gaveta de Guardados; Edusp,1998)
Outra
característica da obra reside no uso preciso e econômico da linha. A forma se
estabelece a partir da ossatura das coisas e gentes. O próprio Iberê admite:
foi nas aulas de Guignard que aprendeu a valorizar a precisão da linha que seu
mestre tinha ido buscar em Domenico Ghirlandaio e Paolo Uccello, artistas dos
Quattrocento (século XV).
Já
pertence aos fatos incontornáveis da História da Arte no Brasil a descendência
guignardiana do traço limpo, da incisão que não permite arrependimentos porque
feita com grafite duro, quase estilete a sulcar de modo indelével o papel.
Motivo de sobra para colocar um autoretrato de genética guignardiana na
abertura do percurso expositivo. Mas essas doçuras foram logo abandonadas pelo
aluno no rápido encontro de sua crispada persona artística. O traço iria
libertar-se gradualmente dos contornos para buscar o avesso das formas e
expor-lhe as vísceras.
A
matriz gráfica em torno da qual Iberê construiu seu legado artístico está
frisada no percurso expositivo pela predominância de desenhos e gravuras. Nele
se observam os exercícios de acurada observação da figura e as infinitas
conotações que o artista construía para nos aproximar dessas humanidades. Que
tanto podiam surgir do clássico modelo vivo no ateliê como de seres
aparentemente inanimados (ou seja, sem alma), da série sem título (1987) em que
retratou carcaças de carros amontoados em um ferro-velho: soturnas reflexões
sobre a velhice e a obsolescência patrocinada pelo consumismo.
O
protagonismo da linha existe mesmo quando o lápis no papel ou o buril na matriz
de metal são substituídos pelas inscrições com o cabo do pincel ou da espátula
na espessura da tinta na tela. Muitas vezes as incisões são tão fundas que
revelam a trama do tecido do suporte.
A
pintura/desenho que pontua o percurso da mostra revela potência plena na tela Fantasmagoria
IV (1987). As três figuras esqueléticas da composição parecem furar
com seus ossos a carnatura da tinta. Os azuis e pretos que visitam boa parte da
obra do artista nesse período dividem presença com os traços brancos que
conferem dramaticidade escultórica ao conjunto.
“Minha
terra reclama meus ossos”, disse certa vez Iberê. A série Fantasmagorias é
emblemática de uma das vertentes mais significativas da constelação de mundos
da sua obra. Em torno dessa tela de ressonâncias operísticas foram colocados
trabalhos em sintonia com as figuras alongadas, indicativas também da denúncia
das fatuidades e vaidades ocas presentes nas pinturas Manequins,
realizadas na mesma época. O tema se repete no final do percurso expositivo na
suíte serigráfica homônima(1986), onde se registra tanto a obra
acabada quanto diversas provas de estado em que fica evidente a insaciável
busca de Iberê pela melhor forma de solucionar uma composição. Caminho para
tantos resultados excelentes quanto o número de versões que o artista se
dispusesse a fazer.
Em
sala anexa ao percurso principal foi situada a documentação fotográfica
(making-off) e os estudos para a primeira incursão de Iberê no grande formato
dos outdoors, em que resolveu produzir uma releitura apocalíptica da criação do
homem feita por Michelângelo para a Capela Sixtina. Generoso, aceitou o convite
de pronto quando ousei abordá-lo para a experiência dos cartazes, como curadora
da primeira mostra de outdoors artísticos a ser realizada no Rio Grande do Sul
e nos moldes do que tinha sido feito há pouco pelo Museu de Arte Contemporânea
(MAC-USP), nas ruas de São Paulo, por Aracy Amaral. A versão gaúcha desse
evento, realizada em 1984, reuniu 30 artistas de diversas gerações (nota de pé de página
1), desde nomes consagrados como Xico Stockinger até o jovem grafiteiro Frantz.
Diante
do sucesso de público, com caravanas de estudantes vindos do interior para
visitar o conjunto de trabalhos, distribuídos ao longo de algumas das
principais avenidas de Porto Alegre, o patrocinador resolveu estender o período
de exibição da mostra. Porta aberta para a ira de Iberê, homem de contratos
precisos e limpidez de intenções. Habituado aos materiais de vocação perene, ao abrigo das salas expositivas,
foi com revolta que Iberê viu seu trabalho ser despedaçado pelo vento e a chuva
após algumas semanas de exibição nas ruas. Em tom de desagravo, rapidamente a
direção do Museu de Arte do Rio Grande do Sul providenciou nova exposição,
desta vez indoors, dos estudos que geraram o cartaz de rua do ilustre filho da
terra. Nada mais coerente com a obsessão do pintor por vencer o tempo, mesmo
aquele da meteorologia.
Nessa
mesma sala com a reprodução fotográfica do outdoor agrupamos uma seleção de charges
produzidas por Iberê sob o pseudônimo Maqui, onde ele exercita a ironia mordaz,
impiedosa, que dedicava (com justiça, diga-se) aos políticos nacionais. Os
comentários escancaram também um lado misógino e machista que mostra o ser
humano por trás do artista. Afinal, não estamos aqui fazendo uma hagiografia ou
canonização. Seria trair a memória de quem declarava: “Nunca toquei a vida com
a ponta dos dedos. Tudo o que fiz, fiz sempre com paixão”. Politicamente
correto para ele era um palavrão, um sinônimo de censura.
Neste
percurso expositivo ditado pela genética e não pela cronologia, os cromossomos
dominantes (a superfície liquida) também determinam o momento em que a tinta se
torna pastosa, qual matéria vegetal em decomposição na água ou qual acúmulo de
dejetos orgânicos. Representante dessa fase trágica de ressonâncias goyescas (o
Goya de Saturno comendo um de seus filhos), a tela Figura II (1964) foi colocada próxima dos desenhos que ilustraram o
conto O relógio (in No Andar do Tempo; Camargo,
Iberê; Ed. L&PM, 1988). Exímio escritor, é nesse conto que Iberê alcança
com as letras a maior aproximação com o pathos de sua obra
pictórica. Confiram:
(...)
“Sente na pele a frigidez, a maciez pastosa daquela matéria sovada. Esta
amolece, muda a forma, separa-se e aglutina-se ao toque. (...) Savino fecha os
olhos, dilata as narinas e aperta os lábios. Seu rosto ora reflete prazer
anelante, ora sofrimento. Um suspiro lhe escapa do peito no instante em que
encontra uma das peças do relógio. Ele a limpa na manga da camisa e a guarda no
lenço: vísceras de aço do coração do tempo, perdidas e reencontradas na
imundície”.
A
metáfora sobre a condição humana não poderia ser mais pungente. A cena pode ser
transferida, sem perder um átimo de pulsão, para as longas horas de luta
empreendidas pelo artista diante das telas, lambuzado de tintas, ordenando o
caos pictórico que cria e resolve e volta a desmanchar e criar. Ao contrário de
Savino, porém, foi a enorme lucidez do homem Iberê que fez sua arte capturar o
tempo e nos proporcionar contemplá-lo envolto em tintas. Um tempo fora do
tempo. Um tempo da arte.
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Nota
de pé de página:
Além
de Iberê Camargo, os artistas participantes foram: Ana Alegria, Anico
Herskovits, Britto Velho, Carlos Alberto de Oliveira, Carlos Wladimirski,
Danúbio Gonçalves, Diana Domingues, Enio Lippmann, Fernando Baril, Frantz,
Geraldo Roberto, Glauco Rodrigues, Glória Yen Yordi, Gustavo Nakle, João Luiz
Roth, Lenir de Miranda, Leo Dexheimer, Luiz Barth, Maria Lídia Magliani, Maria
Tomaselli, Nelson Jungbluth, Plínio Bernhardt, Regina Ohlweiler, Romanita
Disconzi, Soriano, Vera Chaves Barcellos, Wilson Alves, Xico Stockinger e
Zorávia Bettiol. A maioria dos artistas fez dessa ocasião oportunidade para
expressar apoio à campanha pelas Diretas Já, motivo de mobilização
geral do povo brasileiro e mobilização também da classe artística do Rio Grande
do Sul. Iberê apoiou a causa e passou a envergar um macacão dos postos de
gasolina Ipiranga com o logo da empresa, nas costas, transformado por ele no
slogan “Grito do Ipiranga já”.
Angélica de Moraes (Pelotas (RS), 1956)
Crítica
de artes visuais, jornalista cultural e curadora, é bacharel em Jornalismo pela
PUC-RS (Porto Alegre,1974), cursou mestrado em Artes Visuais: Teoria e Práxis
(PUC-RS) e mestrado em Comunicação e Semiótica (PUC-SP). Radicada em São Paulo
desde 1986, escreveu sobre artes visuais no Caderno 2 do jornal O Estado de S.
Paulo(1990-98) e foi editora de artes visuais da revista Select (2011-2012).
Colabora para as revistas de cultura CULT, Arte!Brasileiros e ArtNexus, entre
outras. Fez curadorias para o Museu de Arte de São Paulo, MASP (individual de Regina
Silveira, 1996), Pinacoteca do Estado de SP (individuais de Elida Tessler,
2003;Thomaz Ianelli, 2007; e Norberto Nicola,2010), Paço das Artes de SP
(coletiva “Por que Duchamp?”, 1999; coletiva “Pintura Reencarnada”, 2005), SESC
Pompéia (trilogia de coletivas anuais “Território Expandido”, 1999/2000/2001),
Paço Imperial, RJ (individual de Alex Flemming, 2006), Santander Cultural de
Porto Alegre (coletiva“Sem Fronteiras”, 2001; coletiva “Agora/Ágora”, 2011),
entre outras. Foi curadora-coordenadora do primeiro Rumos Visuais Itaú Cultural
(1999-2000). É autora ou coautora de 11 livros, sendo o mais recente “O Valor
da Obra de Arte” (Ed. Metalivros, SP, 2014).
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